segunda-feira, 9 de março de 2015

Lei e disciplina IV

Anos atrás descobri o livro "The Divine Conspiracy" de Dallas Willard, um filósofo cristão que escreveu extensivamente sobre o conceito das disciplinas espirituais associada à transformação do caráter, o que muitos chamam de "formação espiritual". O conceito das disciplinas em si é simples, porém eficaz em fazer com que o processo da transformação do caráter seja uma realidade palpável na vida daquele que o põem em prática.

Como qualquer outro ramo da atividade humana, conhecer a Deus e tornar-se apto nos assuntos da natureza espiritual é uma questão de estudo e aprendizado. Suponha que alguem deseja tornar-se um pianista. Para este fim, existe um corpo de conhecimento testado e provado que quando seguido à risca pode habilitar qualquer pessoa a se tornar um pianista. Da mesma forma, suponha que alguém deseje tornar-se um 'santo'. Para este fim, também existe um corpo de conhecimento testado e provado que quando seguido à risca pode habilitar qualquer pessoa a tornar-se um santo, segundo o coração de Deus. Para a maioria das pessoas pouca dúvida existe sobre o que é necessário fazer para tornar-se um grande pianista, porém, os passos necessários para tornar-se um santo está coberto de incertezas e é motivo de constante debate. Além do mais, é relativamente fácil encontrar pessoas que tornaram-se grandes pianistas como resultado do estudo e prática, mas é raro encontrar um santo que possa explicar e exemplificar o processo de santificação. Naturalmente os melhores exemplos encontram-se na Bíblia, Paulo sendo, talvez, o mais proeminente. Uma leitura cuidadosa das suas cartas mostram claramente o caminho, mas, infelizmente, muitos têm apenas uma compreensão superficial dos seus ensinos.

Como é que alguém que deseja ser santo, torna-se um santo? Aqui é necessário definir o que é ser 'santo', o que pode levar a uma longa tangente. Para efeito prático, suponha que alguém que tendo tomado conhecimento da pessoa de Jesus, sua filosofia e estilo de vida, acha-se completamente persuadido a estudar com afinco seus ensinamentos, bem como colocar em prática seus ensinos de maneira sistemática e metódica com o objetivo de alcançar os resultados demonstrados na vida e ensinos de Jesus. Este indivíduo deve ser considerado um "aprendiz da santidade", ou, para usar o termo bíblico, discípulo. Com experiência e prática o aprendiz passará a ser reconhecido como um santo simplesmente por demonstrar na sua vida a mesma filosofia e resultados observados na vida de Jesus.

Vamos ver como funciona com alguém que deseja se tornar um exímio pianista. O indivíduo descobre o talento extraordinário de Krystian Zimerman e passa a estudar piano com o grande mestre. Reproduzir a beleza e a qualidade da música de Zimerman torna-se o alvo, e cada conceito, ensino e prática é seguida nos mínimos detalhes. No princípio trata-se não de um pianista, mas de um aprendiz. Com o tempo, a virtuosidade do estudante será notada e ele passará a ser considerado um pianista, ou talvez até um exímio pianista, mesmo que ele próprio ache que ainda está longe de ser tão virtuoso quanto o mestre. A analogia com a santidade é evidente.

No próximo post vou apresentar o que penso estar incorreto com a forma como a santidade é vista e comumente praticada nos círculos religiosos. Para não dar muito suspense, já posso antecipar que se trata de confundir o exercício com a performance.





sexta-feira, 6 de março de 2015

Lei e disciplina III

Anos atrás morávamos perto de Lancaster, Pensilvânia, um reduto de pessoas Amish. Eles não usam energia elétrica em casa ou na fazenda, andam de carroças e vestem-se como cidadãos do século dezenove. Vivemos agora em uma região dos Estados Unidos onde existe uma grande concentração de Menonitas. Não é difícil reconhecê-los andando pela cidade. As famílias estão sempre juntas e as mulheres estão sempre usando um lenço rendado na cabeça, cabelos em coque e vestidos compridos de modelo antiquados. Já tivemos vizinhos Mórmons. Semelhante aos Adventistas, eles não tomam bebidas com cafeína, nem bebida alcoólica, não vão em baladas, e pregam uma vida casta até o casamento. De onde vem estas práticas, e o que elas representam? Seriam elas doutrinas, disciplinas ou dogmas? A minha perspectiva é de que a vasta maioria das práticas distintivas que compõe as formas definidas no post anterior, são disciplinas que se incorporaram à doutrina e com o tempo tornaram-se dogma. Eis o processo no caso do adventismo.

Ao longo da formação da igreja, inúmeras práticas introduzidas pelos fundadores tornaram-se a essência do que é ser um adventista. Podemos listar entre elas a adoção de um dieta vegetariana, a abstinência ao consumo de bebida alcoólica, café, e chá preto, a abstinência ao uso de jóias, à visitas ao teatro, cassinos e salões de dança, etc. Tais práticas foram introduzidas com nobres propósitos e tiveram  ampla adoção pelos novos crentes. Estes entusiasticamente as incorporaram aos ensinos da igreja, ou doutrina. Com o passar do tempo as práticas ganharam um status de lei num processo temporal de "canonização." Aqui reside o problema a qual eu me referi anteriormente. Disciplinas jamais deveriam tornar-se leis! Quando isso acontece, elas não somente perdem a eficácia, como também dão uma falsa segurança espiritual. Para piorar a situação, muitos casos, senão todos, a canonização da prática é acompanhada de amnésia quanto à motivação original.

Como é que sabemos quando uma prática virou dogma, ou a disciplina virou lei? Pela maneira como é julgado o membro não conformista com a prática específica, vide o exemplo do cafezinho no post anterior.

Quando uso aqui a palavra disciplina tenho uma definição muito específica em mente. Trata-se das disciplinas espirituais que quando aplicadas devidamente cooperam com a transformação do caráter. Como é possível que nem todos estejam familiarizados com o conceito das disciplinas, no próximo post pretendo abordá-lo brevemente.