segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O castigo que nos traz a paz

Abel ficou enrolando na cama por um longo tempo antes de se levantar. Sonhara com sua família, e ao despertar remoía-lhe no pensamento a lembrança da voz grave da mãe reprendendo-lhe as traquinagens dizendo que o castigo pode tardar mas nunca vai falhar. Procurava distrair o medo, mas os revezes recentes adicionavam uma sombra negra aos seus temores. Vendera o carro para saldar a dívida de um negócio falido. Sem carro para ir trabalhar, ficou em casa alguns dias e foi mandado embora. O co-morador do apartamento tinha sido pego dirigindo sem carteira e estava preso em processo de deportação. Agora tinha que arrumar uma solução urgente para o aluguel que já estava atrasado. Temia pelo que mais poderia acontecer. Pensou em ligar para a família no Brasil, mas sem dinheiro era melhor economizar o cartão. Além disso sua voz poderia traír-lhe a ansiedade do castigo que merecia e que tardara até então, mas que agora, não tinha dúvida, estava esmurrando a sua porta. Levantou para ver quem era, mas eram apenas seus temores.

No espelho do banheiro mal reconheceu o Abel de outrora que seduziu a amiga de colégio no escândalo que consumou sua decisão de fugir para os Estados Unidos. Tinha encontrado a Renata acidentalmente no Orkut acessando a página de velhos amigos de colégio. Ela estava linda nas fotos, ainda irradiando aquele brilho nos olhos que o facinara nos corredores do colégio Adventista. Investigando os scraps e perfil descobriu que ela tinha casado e era uma mãe super coruja de um menino rechonchudo de quase dois anos. Surpreendentemente não havia fotos da família e somente poucas referências ao marido. Na subsequente troca de emails, Abel confirmou sua suspeita de que as coisas não iam bem no casamento de Renata. Depois do nascimento do Felipe, Renata sentía-se cada vez mais sufocada pelo marido que brigava constantemente reclamando de sua excessiva devoção ao menino e ao trabalho. Ela estava enfrentando uma barra em casa e Abel não mediu esforços para ampará-la. Irrefletidamente conduziu o relacionamento a um grau de intimidade que complicou não somente sua vida, mas arruinou a de Renata. Tirou os olhos do espelho, lavou o rosto e despertou para um novo pesadelo.

Os Estados Unidos não manavam leite e mel, como Abel podia constatar pelo armário e geladeira quase vazios. Ele tinha dissolvido uma parceria no Brasil numa loja de eletrônicos para conseguir parte dos 12 mil dólares que precisava para atravessar pelo México. Foi uma saída estratégica para um negócio que andava mal das pernas com operação de caixa dois, contrabando do Paraguai e o fisco fechando o cerco. O único detalhe foi que não avisou ao parceiro sobre a decisão da viagem, e muito menos sobre a grana que tomou "emprestado" para custear as despesas. Abel não tinha dúvidas que trabalhando nos Estados Unidos poderia mandar o dinheiro de volta rapidamente. Porém o máximo que conseguira até então fora mandar de volta o dinheiro do carro para dar crédito às promessas de restituição e poupar a familia das ameaças do ex-sócio que o acusava de ladrão. Desemprego e dinheiro curto eram apenas parte do problema. O vizinho da frente, por exemplo, voltou para o Peru deixando para trás uma dívida de 55 mil dólares de um apêndice supurado. Torturava-se imaginando se voltaria como o peruano ou como o colega deportado. Em qualquer circunstância voltar seria uma tragédia e humilhação, porém um preço bem pago pelas trapaças de outrora. Engoliu em seco a útima fatia de pão e saiu desanimado para procurar emprego.

Ganhando acesso à avenida Abel confortou-se com a idéia de que a repentina desgraça do colega deportado tinha sido beneficial para ele, pois pelo menos agora tinha um carro por tempo indeterminado. O que não tinha, porém, era um destino certo naquela manhã de sábado. Passando em frente de uma igreja Adventista lembrou-se de um amigo que tinha arrumado emprego através de um conhecido daquela igreja. Abel nunca fora Adventista, mas conhecia a religião desde os tempos do colégio, e dada as circunstâncias não tinha nada a perder em dar uma parada e ver se conseguia ajuda. Ao sair do carro, leu em voz alta as palavras do tema do sermão do sábado anunciado no painel do gramado: "O castigo que nos traz a paz". Que castigo seria esse? Franziu a testa raciocinando que a última coisa que alguém esperaria ganhar ao ser castigado seria paz. Sua vida atormentada era prova disso. Sua tia devota sempre dizia que céu não é boca livre e que inferno não é baile: se você não fizer por onde alcançar o paraíso, faça-o pelo menos por medo do capeta. Refletia que se ele conseguira escapar do castigo até agora, fora pelo destino, o mesmo destino que não mais o poupava. Parou por um segundo diante da porta incerto se deveria mesmo entrar--não estava vestido adequadamente. Mas inspirado pela curiosidade despertada pelo anúncio entrou assim mesmo como estava. Mal sabia ele que lá dentro alguém o esperava para tomar o seu castigo e oferecer-lhe paz.


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Submetido para a Revista Adventista edição em língua portuguesa na América do Norte.

Um comentário:

Gabriel Henríquez disse...

Cara, essa novela contextualiza uma realidade que eu presumo ser bastante comum aí pelos EUA... está instigante esperar pelos próximos capítulos.